A Gestão Democrática e a Reforma do Pensamento

A GESTÃO DEMOCRÁTICA E A REFORMA DO PENSAMENTO[1]

Silvio Antônio Bedin

 

 

"Não se pode reformar a instituição
sem uma prévia reforma das mentes,
mas não se pode reformar as mentes
sem uma prévia reforma das instituições”  (Morin)

“Uma mudança em um sistema social (...)
somente pode ocorrer  através de uma mudança
no comportamento de seus componentes” (Maturana)

“A reforma de pensamento
é inseparável de uma reforma de vida” (Morin)

            De todos os questionamentos que fiz no decorrer de meu tempo de pesquisa, um deles pareceu-me atingir o cerne fundamental e definidor das mudanças na Escola: Como mudar se as pessoas não se colocam essa perspectiva de possibilidade? De muitos ouvi a terrível sentença: “de que adianta? A vida é assim mesmo!”, justificando a um só tempo a descrença e o conformismo. Perceber as necessidades e acreditar nas possibilidades são desafios distintos mas inter-relacionados e que têm a mesma origem.  Ao reler meu Diário de Campo, reencontrei inúmeras passagens em que traduzi essa descoberta desconcertante, que o problema maior reside na cabeça das pessoas e que sem mudar a forma de pensar não haverá mudanças na Escola. Desta percepção nasceu a convicção de que a mais urgente e primordial das mudanças a  serem  feitas é a de fazer  as pessoas acreditarem em si e nos outros, assumirem-se como intelectuais e atores,  redescobrirem seu poder individual e coletivo para mudar as circunstâncias de sua vida. Dentre os registros que fiz, destaco aqueles que traduzem, mesmo que superficialmente, as faces manifestas de um  real que tem  raízes profundas na Escola:
Dia 17 de Janeiro de 2001: “(...) Ou os professores se assumem como atores da mudança e transformam as estruturas opressivas que fazem o seu trabalho estressante, ou nada mudará. As mudanças na Escola passam necessariamente pelos educadores que, além de serem melhor pagos, precisam assumir o ônus de sua profissão. E um dos ônus é esse: que os professores discutam o seu trabalho, avaliem e projetem as mudanças necessárias. Sem isso, a tendência será a do continuísmo, às vezes quebrado pela iniciativa isolada de um ou outro bem intencionado que irá atrair sobre si os ciúmes dos demais que se sentirão incomodados no berço esplêndido da sua acomodação. Não se deve esperar de cima que essas mudanças ocorram. Do Governo nada virá, mesmo que esse Governo esteja imbuído das melhores intenções. As mudanças precisam ser construídas no chão da Escola por aqueles que se sentem comprometidos com ela. É possível mudar, mas é preciso pensar e planejar a mudança, envolvendo a todos no processo”.

Dia 10 de maio de 2002: “Disse-me a professora de biologia que os professores em geral têm dificuldades em trabalhar com o movimento dos seus alunos (...) Em geral não se confia na capacidade das pessoas, não se acredita, não se investe nelas. E é isso tudo que é fator de sobrecarga e centralização nos ombros de alguns. Ela se refere às colegas cansadas que poderiam canalizar as enormes energias dos seus alunos em alívio próprio. Por que não o fazem? Não acreditam na capacidade deles. No fundo de tudo, porém, trata-se da forma como se vê e pensa o outro, os alunos, a realidade. Por isso mesmo, é preciso reforçar a idéia de que as mudanças das práticas pedagógicas passam pela ‘reforma’  da forma de pensar. Morin tem razão: só com uma cabeça bem-feita conseguir-se-á pensar corretamente a realidade e ajudar a mudar a Escola. Só uma cabeça bem-feita, fruto da reforma do pensamento, poderá conseguir conviver com os ruídos, o barulho, os movimentos, a imensa energia que a Escola congrega”.

De fato, é isso que está proposto por Morin em seu livro “Cabeça Bem-Feita – repensar a reforma, reformar o pensamento”, em que reflete os desafios colocados à educação. “A educação pode nos ajudar a nos tornarmos melhores, se não mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte poética de nossas vidas”,[2] diz, ao introduzir a discussão. Para que isso ocorra, será preciso saber enfrentar a avalanche de desafios colocados nesse campo, muitos dos quais decorrem da própria forma como se vê e organiza o sistema educacional. É no contexto deste debate que ele defende a reforma do pensamento, como condição prévia a que se reformem as instituições que são feitas do jeito e do tamanho das pessoas que as configuram. O impasse está colocado nos termos da epígrafe acima: para reformar as instituições é preciso reformar as mentes. Mas quem e como reformar as mentes dos que fazem as instituições?
A questão é tão antiga quanto nova, sendo que o próprio Marx tratara dela ao se perguntar “quem educará os educadores?”. Para responde-la, Morin não titubeia em afirmar que
“É preciso saber começar e o começo só pode ser desviante e marginal. (...); a iniciativa só pode partir de uma minoria, a princípio incompreendida, às vezes perseguida. Depois, a idéia é disseminada, e quando se difunde, torna-se uma força atuante”.[3]

            Não existe definido previamente um ponto que possa ser identificado como o começo. Qualquer ponto pode inaugurar o processo. Basta ter essa percepção e estar disposto a encarar as resistências inacreditáveis de que o autor fala, ao referir-se às pedras colocadas nesse caminho. Talvez, por isso mesmo, afirma que essa tarefa precisa ser encarada como uma missão, que só pode ser levada adiante se amparada em qualidades fundamentais como a fé  e o amor. Não há como ser educador sem que se esteja aberto às possibilidades inscritas no ser humano e sem que se faça, de antemão, uma aposta e se acredite nessa missão. A fé impulsiona a estar sempre aberto ao novo e a buscá-lo. Não há como ser educador sem amor pelo conhecimento e pelos alunos e sem sentir o prazer que isso provoca. É isso que preenche de sentido e tempera de gosto a vida de quem educa. “Onde não há amor, só há problemas de carreira e de dinheiro para o professor; e de tédio, para os alunos”,[4] dispara Morin.  Se presentes em sua vida, a vivência dessas qualidades conduzirá o educador na descoberta em si e no aprendizado de uma outra qualidade: a de ser um artista. Que faz o artista? Pinta de beleza a vida. Fé, amor e arte integram a trindade laica que, segundo Morin, constitui o círculo recorrente que alimenta a missão do educador.
Na Escola, o começo de tudo foi como todo começo: engatinhando. Bem que parecia haver boa vontade por parte da equipe que assumira a Escola. Contudo, absorvida pelo turbilhão, presa permanentemente à dura realidade, contentava-se em administrar, da melhor forma,  o que lhe era possível. Percebi que, muitas vezes,  não se faz diferente, não por que não se quer, mas porque não se sabe, ou então porque faltam as condições necessárias. 
Nem mesmo o movimento da Constituinte Escolar, desencadeado pela Secretaria de Educação, conseguiu penetrar na Escola, esbarrando em sua estrutura hermética, sem tempo para desenvolver-se, senão da forma como foi, atingindo a um número restrito de pessoas, entre eles alguns professores.  Evidente que para ser diferente precisava contar com quem pudesse pensar sua aplicação no contexto da Escola, de forma a envolver todos os seus atores. Mas não foi assim. Não obstante, trouxe algum alento ao introduzir e provocar algumas discussões importantes, como as que registrei;
Dia  26 de março de 2001: “Vejo que a hora é de manter a tranqüilidade e de fazer na Escola o que for possível para avançar. Conviver com as contradições. Não há outro remédio. E esperar que o tempo faça o seu trabalho. Relembro o que dizia o velho Marx: ao homem é dado fazer a história não como quer, mas como as condições lhe permitem. Vejo que no Bandeirante, há coisas novas surgindo, que apontam para mudanças a médio prazo:  a relação respeitosa e democrática da equipe diretiva com os professores e alunos não é pouca coisa numa Escola construída sob o paradigma do autoritarismo. A agregação de forças na equipe diretiva, supervisão e orientação, também é novo, significando a possibilidade de construção de um espaço para pensar a Escola. A partir daí, muita coisa tenderá a mudar, embora a perspectiva seja de que as mudanças serão lentas. Talvez a melhor maneira de suportar as tensões deste tempo precioso que temos, e que não sabemos usar para dar conta dos desafios que ele coloca, seja exercitando a paciência histórica de que falava Freire. Pacientemente impacientes viver as tensões deste tempo, inconformados com o que está colocado -  as contradições entre um discurso politicamente correto e uma prática incoerente -  mas apostando que o tempo e os homens saberão construir uma outra realidade”.

Dia 11 de abril de 2001: “Sem um programa de formação sistemático que garanta a reflexão sobre as práticas (o que só seria possível com o acesso aos conhecimentos produzidos em educação, com a interferência de assessorias especializadas),  como esperar avanços na Escola? Sem isso, a tendência é repetir-se a mesmice simplesmente porque não se produz o novo sem reflexão, sem formação sistemática a partir do que se faz, mas procurando aprimorar e superar o que se faz. Só haverá mudanças na Escola se os sujeitos responsáveis pela sua sustentação tiverem possibilidades de repensar suas práticas”.

Dia 11 de outubro de 2001: “Como pensar a Escola, sem pensar o professor? Como pensar a qualidade de ensino sem que seja pensada a qualificação do professor? Não é possível querer extrair água de pedra; como esperar qualidade de trabalho sem que sejam oferecidas condições para que o professor possa ter acesso aos conhecimentos das ciências? E não basta apenas incentivar essa busca. Um Governo comprometido com a educação deve pensar em políticas voltadas à formação permanente, no contexto do trabalho do professor. Ontem as representantes da CRE devolveram os Planos de Estudo aos professores das Escolas da região, apontando a falta de interdisciplinaridade das áreas entre si. Mas que se pode esperar, se esta é a prática vigente na Escola, o da fragmentação dos saberes? Como querer exigir interdisciplinaridade se na cabeça e na prática dos professores não cabe esta palavra? Por que nisso reside o problema, na concepção que os professores têm de como realizar o seu trabalho, uma concepção sorvida na fragmentada Universidade e que continua a manter-se na Escola. Para mudar a prática é preciso mudar a cabeça, a forma de pensar a Escola, a prática, o exercício profissional. E para mudar a forma de pensar é preciso que os professores tenham tempo para beber de novas fontes os novos conhecimentos das ciências. O novo não poderá surgir do nada. ‘É preciso pensar a Escola’, me disse a professora de biologia. ‘É preciso planejar o nosso trabalho e para planejar certo precisa pensar certo’. Só uma Escola pensada pode dar certo! Precisa-se criar as condições pra que esse ‘pensar e planejar’ se torne possível”.

Embora estivesse claro qual era a saída para a situação, somente  no decorrer do processo é que as condições foram gradualmente sendo criadas para tornar possível a realização de alguns projetos. Às inquietações, a equipe diretiva procurou responder, no início,  com algumas iniciativas que, mesmo tímidas e frágeis, cumpriram o papel  de oxigenar algumas discussões importantes. No começo,  encontros episódicos e abertos à livre participação dos professores, normalmente feitos depois de uma semana de trabalho, foram demonstrando as possibilidades e os limites de tais iniciativas.  Sim! Mostrava-se pertinente e necessário criar tempos de formação na Escola, assim como buscar  assessorias de fora da Escola. Não! Os encontros precisavam encontrar seu tempo no tempo de trabalho dos professores e no calendário escolar,  assim como envolver a participação de todos os professores. Contudo e finalmente, começava-se a trilhar um caminho novo na Escola.
Nascidos desse processo, dois projetos foram sendo esboçados e desenvolvidos no decorrer da minha pesquisa: “O Bandeirante na trilha em busca da Paz” e a “A Escola e a Ética do Cuidado”. Cada um deles tem proporcionado, em tempos diferenciados, um profícuo e qualificado diálogo entre a Escola e  interlocutores externos a ela, sobre temáticas oriundas do seu chão, que por sua vez se ampliam e articulam com discussões  universais: a questão da violência na Escola (e no mundo); a responsabilidade (ética) de construir novas formas de convivência na Escola (e no mundo); a construção de uma cultura de paz.
      O curso de “Educação para a Paz” nasceu do aflitivo questionamento colocado,  permanentemente, em todas as reuniões e discussões feitas na Escola: como responder pedagogicamente às manifestações de violência na Escola? Para aprofundar essa e outras decorrentes questões percebeu-se a necessidade de buscar quem pudesse ajudar a fundamentar  tais discussões. Foi o que a equipe diretiva fez,  no começo de 2001, junto a uma organização não-governamental denominada  “Educadores para a Paz”, com sede em Porto Alegre. Do contato inicial nasceu uma parceria que perdura até hoje, traduzida em inúmeros encontros desenvolvidos na Escola, inicialmente com professores e hoje incluindo também funcionários, estudantes e pais. Esse processo gradual tem se constituído num amplo e saudável movimento interno, que  confere à Escola uma identidade própria. Em torno dele tem-se congregado a comunidade escolar, unindo-a e fortalecendo seus laços. 
Há alguns apontamentos que se fazem necessários para a compreensão da importância desse processo: a decisão de parar a Escola para pensar-se; o envolvimento gradativo dos professores e funcionários no processo; a inclusão dos encontros no horário de trabalho, em alternados dias no decorrer da semana e que, a partir de 2002, passaram a ser incluídos no calendário escolar;  a presença de interlocutores qualificados para a assessoria; a abordagem de temáticas oriundas do cotidiano escolar, feitas em forma de oficinas, proporcionando a apropriação teórica da riqueza  produzida nas práticas escolares; a valorização das experiências e da vida como referenciais permanentes e promotores de reflexões e ações conseqüentes; a abordagem dos diferentes sub-temas, de forma concatenada e dinâmica, atingindo não apenas as mentes, mas os corações dos sujeitos incluídos no processo; a ampliação dos cursos para a comunidade escolar, envolvendo, a partir de 2003,  alunos e pais no projeto.
Todos esses se constituem em  componentes fundamentais na construção desse processo que tem ajudado a transformar a Escola por dentro. Há outras qualidades que estão inscritas na própria forma como ele tem sido vivido e desenvolvido neste tempo. É preciso salientar que mais do que os conteúdos em si, o que tem tocado as pessoas é a forma sensível como eles têm sido abordados. Mais do que as mentes, esse trabalho tem tocado o coração das pessoas conduzindo-as  a uma viagem de descoberta interior,  fazendo-as ultrapassar as próprias  fronteiras interiores e embrenhar-se nos caminhos do auto-conhecimento. Essa descoberta de si, das fraquezas, carências e feridas e também das multipotencialidades inscritas no interior de cada um, tem ajudado a  transformar as pessoas e favorecido a recriação das relações na Escola.
O próprio Morin já alertara para os significados, desdobramentos e exigências  da reforma do pensamento dizendo que ele é inseparável de uma reforma de vida.  Em seu diário “Um Ano Sísifo”  ele aprofunda essas idéias ao apropriar-se  das palavras do jesuíta Jean-Yves Calvez:  
 “A reforma do pensamento é inseparável da reforma de vida (...) Como reformar o pensamento sem controle de si próprio, auto-exame e autocrítica da sua própria percepção, da sua própria memória, da sua argumentação? Como reformar o pensamento se não se é capaz de ouvir o outro? Isto significa, necessariamente, reformar o seu modo de vida, para escapar à superficialidade, à mudaneidade, em resumo a tudo o que nos diverte e faz andar às voltas”.[5]
De muitos ouvi essa confissão: de que os cursos os têm ajudado a mudar a própria vida. Dessa mudança que ocorre no interior das pessoas, projeta-se uma outra mudança, não menos fundamental, que se dá com a da descoberta do outro na convivência. Descobrir-se e descobrir as singularidades dos outros, perceber-se e perceber os outros como elos fundamentais de uma comunidade de pertença, tem transformado as relações na Escola.
Entende-se que,  não por nada, Todorov  tenha enfatizando tanto que o maior desafio do nosso tempo seja esse mesmo, o de ultrapassar as barreiras que nos separam do outro. “Pois o outro deve ser descoberto”[6], acentua ele, ao contar a história da conquista e genocídio americano como exemplo claro de até onde pode chegar a razão louca, se isso não ocorrer. Descobrir, amar e conhecer o outro, eis os desafios colocados a quem se propõe a escrever de outra forma a história, a começar do microcosmo onde se vive.
 Na Escola, o que ocorre é que muitas vezes, mesmo vivendo juntos, as pessoas não se conhecem, ignorando que a dor e a alegria de uns, é a mesma dor e alegria de outros. Percebe-se que há barreiras incríveis que impedem o mútuo conhecimento e as relações. Como construir solidariedade na Escola se as pessoas não estão abertas umas às outras? Tocar a profundidade interior de cada sujeito é o começo de tudo. Maturana já alertara que “as fronteiras emocionais só podem ser cruzadas através da sedução emocional, e nunca através da razão”.[7]
Quando tais fronteiras são ultrapassadas, o que acontece é isso, um empoderamento das pessoas que passam a constituir-se, individual e coletivamente, como atores em um cenário onde tudo é possível acontecer e onde o possível depende de cada um e de todos. A perspectiva do olhar se transfere, então, para o microcosmo da Escola, onde cada um pode participar e sentir-se protagonista de uma experiência comum de mudanças.  A questão chave que se coloca é essa: o que eu  posso fazer para melhorar a ordem das coisas onde vivo? Pelo que testemunhei, isso tem levado as pessoas, mesmo que em graus diferenciados, a comprometer-se com uma nova forma de ser, viver e agir no contexto da Escola.
Registrei em meu Diário de Campo o impacto positivo dessas descobertas.
Dia 15 de setembro de 2002: ”Terminou ao meio-dia de ontem, mais um encontro de educação pela paz. Desde sexta-feira de manhã, a Escola parou para refletir sobre a transversalização da paz no currículo das disciplinas da Escola (...). Chamou-me atenção que o público fiel ao projeto é significativo. Os próprios assessores se mostraram entusiasmados com o grande grupo que está comprometido com o processo. (...). É preciso olhar para esses professores que têm um compromisso com a Escola e com o processo de mudanças que nela vem ocorrendo. São eles os responsáveis pelos ‘milagres’ que vejo acontecer. Durante o encontro, em alguns momentos, havia um clima de intensa emoção e comunhão no grupo, como ontem durante a celebração final. Um clima de comunhão fraternal incomum, depois de tantos e profundos debates sobre as relações de fraternidade dentro da Escola. É por aí que se constroem as mudanças, tocando profundamente as pessoas em seu interior. E o simbólico, a dimensão da espiritualidade vivida juntos, é um fator inequívoco desse poder (...). Todo o trabalho foi dirigido para as práticas e vivências cotidianas da vida dos professores e suas relações na Escola. Tenho por mim, cada vez mais claro, que para ser eficaz e comprometedora, a formação precisa partir da vida concreta dos professores e ajudar a qualificar melhor os contextos em que vivem e convivem. Tem que se tornar palpável e iluminar sua realidade concreta. Ontem, uma das professoras presentes, ao avaliar o curso, dizia emocionada que “estamos a caminho. Na grande maioria das vezes não temos certeza daquilo que fazemos. O que dá certo com um pode não dar certo com outro. Trabalhamos o tempo todo com a incerteza. Esses cursos tem-nos ajudado muito a abrir os olhos para isso e abrir-nos para os outros também. Precisamos parar de cobrar, precisamos nos perdoar também’. A assessora reagiu dizendo que quando se trabalha com a culpa, as ações ficam paralisadas porque a culpa paralisa o agir.  Outra professora presente disse que ‘não é apenas culpa que sentimos, mas impotência diante de situações para as quais não se vê saída’. Esse é um fator de angústia para muitos”.

Ao embalo desse processo de mudanças, a própria Escola tem sido forçada a reorganizar-se pegadogicamente. Uma das novidades significativas dessa caminhada foi inaugurada com a decisão assumida coletivamente na Escola de transformar as aulas destinadas ao Ensino Religioso em Espaços Abertos de diálogo entre os alunos com seus professores conselheiros. Transformou-se assim um problema numa nova possibilidade. Nesse contexto, uma  iniciativa quase insignificante como essa, ao abrir um novo espaço de florescimento de potencialidades, carrega  consigo um valor substancial para a Escola que, organicamente, passa a tratar de outra maneira a vida que nela viceja. Imperceptíveis às vezes, as mudanças na convivência transfiguram-se no ar que se respira e na maneira como acontecem as relações no dia-a-dia da Escola.
Há, além disso, um outro componente fundamental para compreensão das mudanças que estão ocorrendo nas relações interpessoais e práticas pedagógicas no contexto da Escola. É preciso considerar em toda a sua amplitude e profundidade o significado da implementação em 2002, do curso “A Escola e a ética do cuidado”. Nascido do mesmo desafio de transformar as práticas pedagógicas e as relações, o curso se constituiu como um manancial contínuo de  alimentação teórica  voltado a otimizar e sustentar as  inovações em curso na Escola. 
A parceria aconteceu, desta feita, com o Núcleo de Estudos “Educação e a Gestão do Cuidado”,  da FACED (UFRGS), a partir de contatos preliminares que resultaram  na  elaboração de uma proposta voltada a atender, em particular, aos desafios de uma Escola em processo de mudanças. A formatação final da proposta  resultou num curso de extensão universitária, com um programa de atividades desenvolvido no interior da Escola, com a duração de 44 horas alternadas de trabalho durante o ano de 2002. 
Estamos diante  de alguns inéditos viáveis, como falava Freire, que é preciso considerar. Embora tivesse havido experiências congêneres no passado, promovidas pela CIE,  ao abrir-se para acolher em seu seio um curso desta natureza,  a Escola promove inúmeras inovações e inversões na lógica tradicional de formação. Tradicionalmente, os professores que quisessem, buscavam fora e longe da Escola a formação necessária ao seu aprimoramento do desempenho profissional, isso sempre feito com sacrifício e custos elevados. Inversamente, a proposta do curso traz a Universidade para o  interior da Escola, para debater e refletir com o conjunto dos seus profissionais,  as demandas e desafios nascidos em seu contexto. Isso por si já traduz um enorme significado para a Escola que passa a vivenciar todo um processo de mobilização e organização interna para acolher a proposta. Não se trata mais de algo episódico e fragmentado, mas de uma proposta de formação continuada, que envolve a todos na sua consecução, gerando compromissos que acabam confluindo para a qualificação do trabalho pedagógico e o fortalecimento da instituição.
 Ademais, é preciso destacar uma outra questão que não é de somenos importância. Os cursos só se tornaram realidade na Escola, graças à iniciativa e  empenho da equipe diretiva e dos organismos da Escola. Há aqui um componente de ousadia que não pode ser desconsiderado. Se fosse esperar pelo Estado e suas esferas intermediárias, os cursos não teriam se concretizado. Colocada em ordem de prioridade, a própria Escola se encarregou de subsidiar os cursos com recursos financeiros próprios (do orçamento quadrimestral e do CPM)  desonerando inteiramente os seus professores, que entraram apenas com um valor simbólico de inscrição. Sobre a importância e o poder de tais iniciativas para as mudanças que estão ocorrendo na Escola, escrevi:
Dia  12 de junho de 2002: “O curso ‘A escola e a ética do cuidado’ iniciou na Escola e com ele um começo cheio de promessas. Um tempo de semeadura, cujos frutos virão a seu tempo. Na reunião desta manhã, a vice-diretora colocou o diálogo que teve com uma das professoras mais rígidas da Escola. Dizia ela que está vendo acontecer o ‘começo de um novo tempo na Escola’, referindo-se, de forma elogiosa, ao trabalho de formação que está acontecendo. Outros testemunharam que estão vendo os professores mudando de atitudes dentro da  sala de aula. Ontem uma delas admitiu que conseguiu dar um abraço a um aluno, com quem tinha brigado há tempos. Qual a razão dessa mudança na forma de ser e agir dos professores na Escola? Isso é fruto do processo de ‘educação para a paz’ desenvolvido desde o ano passado. Há uma abertura ao novo, o grupo está maduro para acolher o que os assessores vêm dizer. Isso tem a ver também com o trabalho de muitos anos proporcionado pela CIE. O fato é que se trata de um discurso que vem ao encontro de uma Escola em movimento e que vem respaldar ou questionar o que vem nela sendo feito. Agora, os próprios assessores diziam como se sentiram calorosamente recebidos pelo grupo e perceberam seu interesse e atenção. Não houve passividade dos cursistas, havia interesse, acompanhamento, concordância e diálogo. A formação de professores precisa voltar-se às vivências que trazem consigo para ser repartidas. Cabem aí os erros, as mágoas, os desvios. Mas há também muita coisa boa a ser dita. O curso, nesta etapa, conseguiu fazer com que os cursistas se apropriassem de suas experiências e as repartissem entre si. A riqueza não foi o assessor que trouxe. Ela já estava no grupo. O que o assessor fez foi proporcionar sua descoberta e socialização. Essa é a verdadeira e eficaz formação: a que nascendo das demandas da Escola se proponha a elas responder, não com receitas prontas, mas com reflexões que ajudem a cada um tornar-se sujeito  criador de seu processo”.

Dia 11 de julho de 2002: “Ontem foi dia de curso no Bandeirante e mais uma vez os educadores se reuniram para vivenciar, de forma intensa, as temáticas propostas. Foi bonito vê-los todos assim, reunidos num dia de intenso frio, ao redor de aquecedores, para discutir a Escola, os fazeres pedagógicos. A intensidade era maior devido à integração de educadores de outras instituições que vieram participar (...) Trata-se de um evidente exemplo de iniciativa e vontade política. Rompeu-se os limites impostos pelas políticas públicas (ou sua falta), e, ousadamente, avançou-se para o terreno das possibilidades. Claro que foi preciso contar com a iniciativa criadora, inventiva,  vontade política,  aposta no novo e  fé de que é possível mudar e construir formas novas de atender às demandas da Escola. Há quanto tempo vem sendo anunciado que a formação dos professores é necessidade e que precisa ser pensada como processo contínuo e em serviço?  Pois é isso que está acontecendo na Escola. Milagre? Não, se por milagre se entender a interferência de algum ente superior no processo, pois ele não dependeu sequer do Estado para acontecer. Mas se por milagre se entender que o sucesso da iniciativa resultou do empenho e da vontade de uma multiplicidade de atores em meio a inúmeras adversidades, então sim, é um milagre! Principalmente, por tratar-se de uma pretensão construída no terreno do inédito e do imprevisível. Milagre que demonstra, acima de tudo, o leque imenso de possibilidades que tem a Escola Pública quando seus integrantes assumem-se como atores e compreendem o enorme potencial de criação e invenção que coletivamente possuem. Um milagre que resulta de uma soma de fatores e circunstâncias que se somaram para realizar um desejo coletivo. (...) O reencontro desta manhã refletiu o entusiasmo partilhado, a euforia coletiva, sorvida juntos, após o encontro de ontem. Na sala dos professores, as conversas em alto tom, as risadas e trocas entusiasmadas, davam o grau do contentamento. Clima solto, energia positiva com o vivido. Uma professora me contava dos depoimentos que colhera de seus colegas que estão reconhecendo-se em mudança. Uma delas disse que está mudando a própria vida e as relações em casa. A diretora me disse, empolgada, que ouviu um dos assessores tocar o nó górdio da questão na Escola: quem não se assume e não gosta de ser educador está no lugar errado e deve procurar outra profissão!”
           
Dia 13 de outubro de 2002: “Encerramos com chave de ouro a última etapa do curso “A Escola e a ética do cuidado”. E a chave de ouro a que me refiro foi aquela que abre as portas da profundeza do ser pessoal para atingir o âmago fundamental das pessoas: sua emoção. O discurso, muito bonito e profundo, de como constituir a Escola como um espaço de cuidado, com um projeto político-pedagógico e um currículo voltados, centrados na ética, mexeu com as pessoas. A porta que abriu e fechou o curso, após a acolhida da diretora, foi a música ‘certas coisas pra dizer’, um chamado poético à responsabilidade com a própria vida. Ao final, abraçados, uns aos outros, formou-se um grande círculo, todos cantando a mesma música, mesmo que de formas diferentes. Profundamente simbólico. O que faz a harmonia de uma orquestra ou coral, não é a uniformidade e sim a diferença. Há uma tonalidade e um ritmo que são comuns. Mas cada instrumento musical contribui com o conjunto com seu som característico, conferindo-lhe uma beleza que enche de prazer e emoção a quem ouve. Que dizer da Escola quando a pluralidade e as diferenças encontram o caminho da tonalidade comum e começam a dançar no mesmo ritmo? Quando isso acontece irrompe o milagre criador da sinfonia e se toca no cerne do mistério de onde se originam a dor e a alegria, o sofrimento e o prazer, a paixão inconfundível que marca a tonalidade da vida de cada um.”

Olhar para esta realidade, de uma Escola em movimento, perceber os nós onde se concentram as amarras que podem fazer as pessoas melhores e mais felizes, pode ajudar, a quem queira, a reforçar  as razões da esperança.  Ao cantar  que “todo artista tem que ir onde o povo está”, o poeta inspirou-se em algo fundamental, que pode ajudar aqueles que acreditam e se propõem a mudar a Escola. Quando realizada no cenário de vida e luta do professor, a formação continuada será como uma fonte perene a mitigar sua sede e a dar-lhe forças para continuar sua missão, apesar de tudo.


Referência:

BEDIN, Silvio Antonio. A Gestão Democrática e a Reforma do pensamento. In: Escola: da magia da criação - as éticas que sustentam a escola pública. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2006. p.103-115.





[1] O texto ora apresentado é um fragmento (páginas 103-115) do livro de Silvio Antônio Bedin intitulado: Escola: da magia da criação - as éticas que sustentam a escola pública.
[2] [2] MORIN, Edgar. Cabeça Bem-Feita – Repensar a Reforma, reformar o Pensamento.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Pg. 11.
[3] MORIN, Edgar. Cabeça Bem-Feita – Repensar a Reforma, reformar o Pensamento.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Pg. 101.
[4] Ibidem. P. 102
[5] MORIN, Edgar. Um Ano Sísifo – Diário de um Fim de Século.Mem Martins (Portugal): Publicações Europa-América, 1998. P. 277.
[6] TODOROV, Tzetan. A conquista da América – A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. P. 243.
[7] MATURANA,. 2001. Op.cit. P. 307.

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